Planejamento sucessório: preenchimento da quota do herdeiro pelo testador
2016
19/05

Planejamento sucessório: preenchimento da quota do herdeiro pelo testador

19/05/2016
Planejamento sucessório: preenchimento da quota do herdeiro pelo testador

Cristiano Pretto

Uma importante forma de planejamento sucessório é o preenchimento da quota do herdeiro pelo testador. A escolha dos bens que comporão a legítima é um meio não somente de escapar do sorteio, mas principalmente assegurar a determinados herdeiros os bens mais interessantes, econômica ou sentimentalmente (KONDYLI, Ioanna. La protection de la famille par la reserve héréditaire en Droits français et grev comparés. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1997, p. 440). Trata-se de assegurar ao testador a escolha sobre a divisão de bens que, de outra forma, não poderia interferir.

No direito brasileiro, o Código Civil de 1916 não previa a partilha pelo testador, mas a doutrina se manifestava a respeito: “Partilha-testamento: a partilha, feita em testamento, será respeitada pelo juiz, quando, morto o testador, se proceder ao seu inventário e se verificar terem sido observadas as formas, condições e regras estabelecidas para o ato testamentário, bem como se foram cumpridos os requisitos essenciais da partilha” (TABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. V. II, 4. ed., São Paulo: Max Limonad, p. 905).

Vale registrar que em julgamento sobre disposição testamentária prevendo que uma das herdeiras deveria ser aquinhoada em dinheiro, exclusivamente, e não em campo, para evitar litígio entre a família, em princípio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul alterou a disposição testamentária, pois a partilha não respeitaria a igualdade qualitativa. Depois, opostos embargos de divergência, determinou-se a manutenção da cláusula. No Supremo Tribunal Federal, a disposição foi mantida a partir da seguinte fundamentação: “cingiu-se a douta decisão local, em face de cláusula testamentária, a lhe dar interpretação consentânea e fiel à vontade da testadora, no sentido de que à sua filha, ora recorrente, tocasse a legítima ‘em dinheiro, com exclusão de campo’, visando, assim, afastar o recrudescimento entre seus filhos de remota animosidade, originada de divergência surgida pelos interesses hereditários subsequentes ao falecimento do marido da testadora. Vê-se que preside a cláusula o intuito indisfarçável de evitar o condomínio entre a recorrente e os demais filhos da testadora. Os fatos que determinaram aquela disposição não sofrem dúvida, tratando-se de cláusula válida, pois não importa a mesma em desigualdade da partilha, cujos bens se distribuem por seu valor exato e real, segundo a respectiva avaliação, com a qual as próprias partes se conformaram. Teve aplicação ao caso vertente o disposto no art. 1.723, do Código Civil, o qual permite ao testador fixar as espécies em que serão pagas as legítimas dos herdeiros, desde que daí não resulte desigualdade dos quinhões” (Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 21.853-RS, 1ª Turma. Rel. A. M. Ribeiro da Costa. 18.12.1952).

Importa referir, também, que o Anteprojeto de Código Civil, apresentado por Orlando Gomes, previa: “Art. 949. Partilha Determinada Pelo Testador – O testador pode indicar os bens e valores que devam constituir ou encher os quinhões hereditários, deliberando ele próprio a partilha, que deve ser respeitada pelos herdeiros, salvo se o valor dos bens não corresponder às quotas estabelecidas. Parágrafo único. Se o testador dispuser sobre bens comuns, a partilha não prevalecerá se o outro cônjuge se opuser (GOMES, Orlando. Anteprojeto de Código Civil (Apresentado ao Exmo. Sr. João Mangabeira, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, em 31 de março de 1963), Rio de Janeiro, 1963, p. 113).

Sobreveio o Código Civil de 2002 e o art. 2014 previu expressamente que: “pode o testador indicar os bens e valores que devem compor os quinhões hereditários, deliberando ele próprio a partilha, que prevalecerá, salvo se o valor dos bens não corresponder às quotas estabelecidas”.

Percebe-se claramente na regra a intenção de preservar a autonomia do testador. Não há dúvida que é importante inovação no ordenamento civil, que vai ao encontro da promoção do testamento, do encorajamento do cidadão em autorregular a transferência de seus interesses pessoais e patrimoniais.

Importante referir, ainda sobre este aspecto, que o valor dos bens da herança, no momento da morte, é o valor de venda, não o da renda, isto é, prefere-se o critério quantitativo ao critério qualitativo.

Bem por isso, Pontes de Miranda já advertia que se tem de apreciar o valor comum de cada objeto singular do patrimônio. Advirta-se, porém, que, por exemplo, a empresa industrial pode ter valor distinto, maior ou menor, daqueles que têm os objetos singulares que a compõem. Aí, o que importa é o valor da unidade econômica, cujos objetos podem ser vendidos, à parte, por aqueles sucessores que a hajam recebido, se lhes convier. Se a empresa continua, após a morte do decujo, com os sucessores, de modo nenhum se pode fazer o cálculo pelos elementos componentes da empresa (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Tomo LVI. 3. Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 90-91).

Note-se que, com correção, o art. 2.014 fala em “deliberar a partilha”, pois “a partilha, no sentido estrito do Direito das Sucessões, é a operação processual pela qual a herança passa do estado de comunhão pro indiviso, estabelecido pela morte e pela transmissão por força de lei, ao estado de quotas completamente separadas, ou ao estado de comunhão pro indiviso ou pro diviso, ‘por força da sentença’” (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. T. LX. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 223).

Finalmente, a partilha deve preservar a igualdade dos quinhões, “que é absoluta; isto é, não se pode, por comodidade, ou por outro motivo, atenuar esta igualdade. Quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens, não; é relativa, no sentido de ser atendida, se possível” (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. T. LX. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 247).

O certo é que o art. 2.104, do Código Civil, ao possibilitar o preenchimento da quota do herdeiro pelo autor da herança, caracteriza-se como relevante instrumento de planejamento sucessório, pois, como é sabido, respeitando a igualdade dos quinhões, é preciso respeita a vontade do testador.

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